segunda-feira, 30 de junho de 2008

APÓLOGO CONTEMPORÂNEO

Alice entrou no quarto jogando a bolsa sobre a cama. Entre os objetos que dela escaparam, estava um livro já bastante marcado pelo tempo. Ela retirou algumas peças de roupa das gavetas e saiu. Mas como quem esqueceu algo, retornou, ligou o computador e saiu novamente. E quando o quarto já aparentava solidão, o barulho da máquina iniciando suas atividades despertou o livro que afundara sobre o edredom na cama.
_Saudações ao “novo” morador, se é que posso chamá-lo de “novo”. – disse-lhe a máquina, irônica.
– Boa tarde. Mas estou apenas de passagem, fui retirado da Biblioteca por essa simpática senhorita. De fato, sou sempre novo, mesmo quando re-visitado: uma viagem a um lugar conhecido jamais é a mesma, não é?
_ Falou em viagem, falou comigo! Você jamais alcançaria a rapidez com que navego pela internet.
_ Posso imaginar. Mas quem se senta à sua frente apenas recebe o que buscou. No entanto, quem vira minhas folhas sempre encontra algo mais. Eu e o leitor ficamos íntimos, somos ambos co-pilotos da viagem.
_ Já que você mencionou intimidade, não pode imaginar os segredos que posso armazenar em meus bancos de dados!
_ Ah! Realmente não! Prezo a privacidade, jamais sequer adiantei o desfecho da história a alguém.
_Sei... Mas você anda meio caidinho, não anda? – Desviou de assunto para compensar-se.
_ De modo algum! Sinto-me tão firme como no dia em que fui impresso e costurado. Essas manchinhas em minha pele apenas comprovam as noites de leitura, as viagens de ônibus a acompanhar meus leitores, e os anos de prestação de serviços à Cultura.
A jovem retornou, encerrando a conversa e a disputa entre egos. Já colocara seu pijama. Estava frio e não pretendia sair do quarto até a hora do jantar. Sentou-se em frente ao computador e depois disso somente ouvia-se o “tec” “tec” no teclado. Se lhe fosse transferida a palavra naquele momento, a máquina expressaria ao livro todo o seu orgulho por ter sido a primeira opção da garota. Mas, de repente, o quarto ficou no escuro. A energia logo voltou, mas a máquina já balbuciava palavras desconexas. Alice percebeu logo que havia algo errado e desligou o computador sem hesitar, amanhã o técnico daria um jeito.
Jogou-se na cama. Sob o edredom, não havia opção mais calorosa do que um bom livro. Como num ritual de iniciação, ela alisou-lhe a capa de couro, em seguida, abriu o exemplar e após tocar-lhe o papel macio, sentiu seu cheiro, adorava o cheiro dos livros antigos, pareciam-lhe objetos sagrados, e imaginava que mãos o haviam tocado antes dela.
Após algumas horas de emocionante narrativa, Alice adormeceu, escapava-lhe de uma das mãos o livro, ao seu lado, e dos lábios, um sorriso de quem retornara de um lugar especial.

sábado, 28 de junho de 2008

DEPÓSITOS DE GENTE

O Sistema Carcerário no Brasil vive crise constante, cujas causas tornam-se evidentes ao estampar todos os dias as manchetes dos jornais: corrupção, rebeliões e superlotações. No entanto, esta é apenas a ponta do iceberg, e convém refletir sobre as reais causas que se ocultam atrás das evidências.
Numa camada superficial, está a violência em seu círculo vicioso: por mais absurdo que pareça, carcereiros, sem especialização, acreditam na violência como medida preventiva para evitar essa mesma violência. Mas o resultado é conhecido por todos nós: rebeliões e mais violência. Mas o sistema transforma a todos em vítimas de suas falhas, os trabalhadores que formam os quadros de funcionários dos sistemas penitenciários, ao passo em que são causadores de violência, também são vítimas da mesma, na medida em que não recebem preparo nem apoio físico e psicológico para lidar com a questão, acabando em muitos casos permanentemente lesados em sua dignidade e corrompidos. E a corrupção unida à deturpação de direitos resulta em exclusão entre os excluídos, que propicia direitos e regalias a quem pode pagar.
O atual quadro da situação, não revela sob nenhum aspecto, um caráter reabilitador do sistema presidiário brasileiro. Esqueceu-se a sua primitiva e primordial finalidade, que é a de reabilitar o cidadão, dando-lhe autonomia e capacidade de autojulgamento necessários para inserir-se novamente na sociedade. Em meio a aplausos, o que vemos é um desejo irrefreável de punição e violência.
Numa camada mais profunda, está a formação à que a sociedade submete seus membros e os valores que têm sido transmitidos de geração a geração. E nessa herança enquadram-se chavões como: preso bom é preso morto.
A sociedade brasileira sofre os efeitos da carência do olhar científico de quem busca as verdadeiras causas de um problema, sem deixar iludir-se por seus efeitos evidentes. Todo indivíduo, que exerce hoje um papel social, que se submete ou não às normas, é fruto de um processo de formação, é resultado desse processo. Ninguém nasce com um carimbo na testa que determine seu caráter, embora alguns já nasçam sob o estigma da marginalização e da exclusão. Uma formação que estimule a violência, só obterá como retorno a brutalidade e a falta de humanização.
Se a formação individual está sujeita ao comportamento coletivo, devemos saber também que a segurança coletiva está igualmente sujeita ao comportamento individual. Assim, pouco resultará o tratamento que se dá ao problema, não se isola a questão isolando o indivíduo em depósitos humanos.
O que presenciamos é uma banalização da violência. A sociedade, descrente da reabilitação, acredita que o melhor caminho é a execução sumária. E se não acreditarmos na capacidade de mudança do ser humano e continuarmos crendo que cada um é o que é, de que vale investir na formação das futuras gerações?
Encarando a questão em sua esfera estrutural, é preciso compreender que igualdade não é tratar a todos como uma grande massa homogênea, igualdade é compreender a diversidade de cada um, igualdade é oportunizar o coletivo, levando em conta o singular. A partir do momento em que o transgressor for visto novamente como ser humano será impossível não enxergar nele o que o distingue dos demais. Não se pode incluir numa mesma unidade carcerária transgressores de diferentes graus de criminalidade, “depositar” mulheres em celas masculinas por falta de espaço, punir ao invés de recuperar.
A única medida preventiva que poderá surtir efeitos é a mudança de mentalidade, é preocupar-se com a formação dos jovens e das crianças, é gerar oportunidades de reabilitação, é encerrar o funcionamento dos depósitos de gente e iniciar um trabalho verdadeiramente comprometido com a recuperação, é a humanização, de todos nós, e não apenas de quem se encontra “do outro lado”.


Ariadne

PREVISÍVEIS RARIDADES

Nos lugares mais comuns, encontros raros podem acontecer, e foi assim, num desses muitos encontros previsíveis que um raro caso de reencontro aconteceu. Homem, casado envolve-se com garota mais jovem. Nada poderia ser mais previsível: quando homens maduros decidem se apaixonar novamente, seus objetos de afeto são sempre mulheres mais jovens.
No entanto, apesar de todos esses lugares-comuns, nenhum dos dois esperava encontrar o outro. Não importa o espaço físico em que se conheceram, nem mesmo o tempo em que tudo se deu, casos assim acontecem o tempo todo... Para toda a vulgaridade da vida, existe a raridade do amor, capaz de nascer nas circunstâncias mais ordinárias.
E assim foram sucessivos encontros furtivos, nas circunstâncias de sempre. Breves eternidades... Ela acreditava em seu íntimo que tudo aquilo nunca mais se repetiria. Ele agradecia por ter uma nova chance de reavivar uma velha chama. Ambos pulsavam em uníssono, tão díspares quanto idênticos.
Mas a realidade sempre bate à porta para nos lembrar uma vez mais que o raro somente é raro por estar fadado à vida breve, e que casos assim acabam quase sempre da mesma forma, apenas com algumas variações de tempo, espaço e prazo de validade.

Ariadne

segunda-feira, 16 de junho de 2008

DESORDEM E PROGRESSO

Para falar em progresso, é caminho obrigatório entender o que é ética, pois ética e progresso estão fortemente vinculados um ao outro. Ética é a reflexão sobre o agir. E o conhecimento da existência do outro antecede essa reflexão que procura antever as conseqüências que nossos atos terão sobre o meio em que vivemos. O outro nesse caso não deve estar exclusivamente vinculado à esfera humana, e sim se estender ao meio, que constitui o ambiente natural e cultural em que habitamos. Ao ignorar a existência do outro, estaremos deixando de refletir sobre nosso próprio futuro. Por isso, a ética demanda visão global que permite enxergar a falta de limites concretos entre o meio e o indivíduo, e perceber a real incapacidade de fragmentar a realidade. Todas as coisas estão ligadas umas às outras, agindo e reagindo umas sobre as outras.
No entanto, se fizermos um rápido retrocesso histórico, facilmente, averiguaremos que muitos foram os episódios desastrosos que resultaram da falta de ética, portanto, da ausência de consideração ao outro, em oposição à presença de uma visão deficiente da realidade, que a subdividiu num verdadeiro mosaico desconexo. Poderíamos desse modo afirmar que a ausência de ética serviria de empecilho para o progresso? De qual progresso estaríamos falando?
O progresso é um substantivo que requer um complemento. Existe o bom progresso, que leva em conta os valores éticos e a igualdade de crescimento, mas não se pode deixar de citar o mau progresso, que ignora a presença do outro, devorando o meio sobre o qual empunha sua bandeira.
Defenderei aqui o bom progresso. Talvez o mais autêntico, afinal, será que realmente poderíamos chamar de progresso um avanço que não alcança a humanidade como um todo? Que se dá de maneira desigual, segregando ao invés de incluir? Talvez seja deveras pretensioso tentar empreender busca a tais respostas, já que as raízes destas estão fincadas no âmago da desigualdade em seu sentido mais amplo: desigualdade de oportunidades; de direito à dignidade, à educação, e, sobretudo, desigualdade de direito à vida. A humanidade não tem provado com freqüência os benefícios do bom progresso, talvez sequer o tenha alcançado, em sua totalidade, em algum momento.
As deturpações de sentido em que o termo progresso se viu envolvido ao longo dos séculos, usado para justificar a sede atroz e inescrupulosa de acúmulo de riquezas, hoje, torna necessária sua clarificação, quanto ao tipo de progresso que a sobrevivência humana preconiza. É preciso esclarecer, no entanto, que toda essa nebulosidade quanto ao termo, deve-se a fatores sociais e jamais etimológicos.
Pesquisas científicas têm nos revelado o que atualmente estamos todos cansados de saber, que os danos causados ao meio ambiente e a banalização da moral podem conduzir-nos à nossa própria extinção, e pouco preocupados com o futuro de nossos descendentes, seguimos nossas vidas, ignorando mais uma vez a destruição do outro, em prol de conforto e prazer quase tão efêmeros quanto o atual sentido de nossas existências.
Mas a esperança no progresso ético deve sobreviver a todas as catástrofes culturais e naturais. E se a desordem prenuncia o progresso, então o caos do qual a humanidade se aproxima, a aproximará também de um enorme espelho, já que a ação do homem reflete-se no meio e o meio volta sua imagem para o homem. E o conhecimento de uma verdade que não queremos ver, nos conduzirá à crise fundamental ao crescimento, e crescer é dar passos adiante, e dar passos adiante é progredir.

MACHADO DE ASSIS, O ALQUIMISTA

A uma primeira impressão, a figura de Machado envolto na eternidade destinada aos homens célebres, muito provavelmente assustaria o leitor mais assíduo. Porém, após alguns “dedinhos de prosa” e já convidados para o chá, irremediavelmente seduzidos por sua narrativa, logo nos consideramos íntimos do mestre. Mas como pode dar-se tão inverossímil oxímoro? Como podemos nós, “homens de rodapé”, estarmos convidados à sua intimidade? Como escalamos de repente sua torre de marfim?
Devo confessar que arquiteto aqui um blefe: há pouco me dispus a vencer o temor de não estar à altura do leitor que Machado pretendia, e agora já o chamo apenas por “Machado”. Mas digo blefe, pois o que posso eu acrescentar a tudo o que já foi dito sobre ele? Pretensão? Talvez, mas talvez uma certa ousadia despertada pelo espírito irônico do amigo de há pouco.
Entretanto percebo que o leitor ao qual Machado buscava era justamente o leitor disponível: disponível a caminhar por entre as linhas, a compreender a trama de sua tessitura, disponível a ser forjado e educado pelo mestre alquimista. Pois se o texto não está pronto até que alguém dê voz e vida ao narrador, o leitor também não está. Ler não é simplesmente decodificar, ler é transpor as palavras, revirá-las, contorcê-las, até que estas balbuciem, já fatigadas, o seu derradeiro sentido, geralmente oculto ao olhar desatento. Nessa parte entra justamente a maestria do mestre, transmutando seu leitor no que este possui de mais íntimo: sua maneira de experimentar o outro.
No entanto, este grande entre os seus, entre os que vieram e entre os que estão por vir, foi ele mesmo composto pelos mesmos elementos que compõe os homens comuns, elementos que compõem a raça brasileira, que formam os gagos, os mestiços e os excluídos em geral, aos quais muitas vezes são negadas oportunidades, e que precisam eles mesmos recriá-las e fortalecer-se galgando obstáculos.
Não pretendo aqui compor retrato de nosso amado e imortal confidente, não ousaria tanto, desejo apenas compartilhar a impressão que este “novo amigo” causou ao meu olhar pouco experimentado.
Mais importante do que descobrir se Capitu, de fato, traiu Bentinho, é o próprio questionar. E através de suas suprimidas linhas, Machado nos revela o quanto é importante perguntar. Nada está completo e deve ser aceito como tal, a importância de perguntar revela-se na superficialidade estática que oculta a transitoriedade das essências. Não há crescimento no “aceitar” passivo, sem o questionamento não existe o caminhar.
Mesmo em sua vivência, o escritor nos revela a falta de aceitação a uma realidade pronta, não aceitando, sobretudo, a posição social a que lhe era por “destino” reservada, construindo-se ao invés de dar-se por concluso.
Filho de “mulato pintor” e de “lavadeira portuguesa”, Machado de Assis perdeu muito jovem ainda mãe e pai. Porém fora adotado pelo coração de sua madrasta, que, sem saber, deu-lhe ferramenta poderosa: as primeiras lições de alfabetização. Sem, no entanto, ter freqüentado escola regular, muito cedo percebeu que “a maior de todas as escolas é a vida”, nunca perdendo as oportunidades que esta lhe reservava ao aprendizado: era um autodidata.
Assim, através de intervalos para leitura, em que se furtava de seu ofício em tipografia, projetou-se de menino descalço a brincar no morro do Livramento às glórias da Corte, a ocupar altos cargos burocráticos e a receber honrarias e homenagens. No casamento encontrou a felicidade em sua plenitude conjugal: D. Carolina, esposa e amiga que veio a suprir-lhe as derradeiras ausências, dando-lhe talvez o que “não achou na solidão das noites nem no tumulto dos dias...”.
Poeta, Cronista, Contista, Romancista; Romântico e Realista, deixou-nos através de sua Vida e de sua Obra uma oportunidade para repensar a organização do mundo (real ou ficcional), escancarando-nos sutilmente a coxia de seu palco, denunciando uma realidade desvendada por seu olhar, sem ocultar ou deixar se perder, no entanto, a poesia presente nas coisas prosaicas.
Seu foco não eram as criaturas grandiosas ou as situações de glamour, mas sim o homem comum, o pequeno burguês e as aparências de sua vida. Ao descrever, não costumava deter-se por muito tempo a delinear cenários físicos, sua fotografia pretendia captar o máximo da alma humana: esse era o cenário que mais lhe interessava, o cenário em que se desenrolavam as paixões, em que se revelavam as camadas que o figurino tende a ocultar.
Assim parece-me Machado: um agitador a perturbar nossas convicções, a tumultuar nossos espíritos, a denunciar aparências; revelando-nos a nós mesmos com elegância e beleza. Assim parece-me Machado a romper as fronteiras do tempo e do espaço, realizando sortilégios, conjurando personagens eternos, projetando-se mais e mais em nosso presente, eternizando-se em nossas leituras e inserindo-nos em suas páginas...

O CHAMADO DA LUA

Em seu apartamento de luxo muito bem localizado na grande cidade, Mimi se espreguiçava deliciosamente sobre sua macia almofada de algodão egípcio.
A lua se erguia tentadora ao despontar da noite. Puxa! Como mexia com ela aquela lua! Grande, amarela e luminosa. Ah! Se não fossem os anos e as vidas que começavam a pesar-lhe sobre os lombos...
Mas fora uma escolha sua, não arriscar uma vida de conforto e afeto para viver a liberdade felina em toda a sua plenitude, a explorar os telhados do subúrbio. No entanto, quando seus irmãos de ralé saíam à noite, atendendo ao chamado da lua, livres e sem senhor, ela sentia em seu pequeno coração as palpitações da dúvida. Como teria sido conhecer a liberdade das ruas a explorar lixeiras nas calçadas da vida errante?
Decide experimentar! Embora não fosse mais uma jovenzinha, precisava conhecer o sabor da liberdade antes de entregar-se à decrepitude da velhice. Seria uma crise de meia idade?
Mimi uma vez mais se espreguiça e avança corajosamente até a janela. Lá de cima, do pára-peito, pode ver o que se desenrola embaixo: as formiguinhas que caminham apressadas, entrando e saindo de seus carrinhos de brinquedo, carregando compras ou levando seus pulguentos companheiros para um passeio. Parecia bem alto, mas acreditava no poderoso amortecimento do famoso pulo do gato. Ou será que a pouca vivência lhe turvava a noção de perigo?
Ficou ainda algum tempo entre o salto para a liberdade, o salto à morte e o recuar. Olha a lua uma vez mais, ouve os miados excitados de seus companheiros de instinto e por fim... Recua.
Os riscos eram muito altos, precisava pôr tudo na balança e pensar com racionalidade.
Acha melhor não refletir mais sobre o peso de suas decisões. Estira-se em sua macia almofada de algodão egípcio e não sem certo pesar, rende-se à sua vidinha segura, regada a leite morno e bons filés de peixe.

INVASOR INESPERADO

Conforme me aprofundava na escuridão da rua, ficava cada vez mais apreensivo com a situação em que eu mesmo havia me colocado. Qualquer ruído já me sobressaltava. O silêncio ecoava em minha mente e meus passos retiniam ao longo da rua de aparência fantasmagórica.
Aos poucos, o caminho se tornou mais e mais familiar: as mesmas casas e o gato gordo da casa da esquina levava para dentro do portão um farto jantar que permanecia imóvel, ainda vivo, porém mortificado por seu predador.
Pouco tempo depois reconheci os números azuis que numeravam a casa amarela. O mais discretamente possível, tateando o escuro, encontrei o trinco que firmava o portão ao chão, soltei-o, e então bastou desencaixar o portão do trinco da fechadura e pronto: estava dentro. Em seguida voltei a encaixar os trincos e o portão estava tão fragilmente trancado quanto antes. Sempre soubera que esses portões não eram seguros!
Uma vez ultrapassada a garagem, logo estava de frente para a porta de entrada. Não me detive de frente para ela, por muito tempo, não tinha experiência com arrombamentos. Tentei as janelas. Dei algumas batidas testando suas travas, e me preocupei novamente com a vizinhança. Sabia que morava gente na casa ao lado, não era uma das muitas ocupadas apenas na temporada. Desisti da janela da sala e me dirigi à janela do quarto. Puxei a parte de tela para mosquitos e bastou empurrar com os dedos, que passavam pelo vão, as travas de madeira que escoravam a parte de vidro, e pronto. Mais uma vez fora mais fácil do que eu pensara, e do que gostaria também.
Devido à minha baixa estatura, não alcançaria a janela sem dificuldade, se não fosse uma cadeira desmontável convenientemente escorada na parede.
Finalmente conseguira entrar na casa. Embora tudo houvesse se passado em poucos minutos, preocupado em não despertar a atenção de ninguém e apreensivo quanto ao sucesso de minha empreitada, o transcorrer daqueles minutos corresponderam a horas de meu tempo psicológico.
Entre uivos desastrosos e latidos que mais transpareciam medo do que valentia, iluminada pela luz do corredor que permanecera acesa, a cadelinha se aproximou do quarto a passos temerosos. Ao me reconhecer, abanou feliz seu rabinho.
Preciso de uma vez por todas me livrar desse infame hábito de perder as chaves de casa!

CARTA SOLÚVEL

Desço da lotação e sinto o vento morno no rosto. Penso no dia de trabalho: algumas decepções, alguns incidentes completamente previsíveis, mas também algumas agradáveis surpresas...
De repente minha mente silencia, e quando tudo está calmo é você que a assalta de inesperado, é como se no cessar de tudo, apenas você permanecesse...
À medida que desço a rua, redijo em pensamento palavras pra você. Inicio com um “Olá meu querido, sinto saudades...” te conto meu dia, suprimo alguns detalhes e vírgulas, e prossigo em minha saudade.
Olho para o céu, num desses suspiros que ocultam lembranças, e vejo as três Marias. Surpreendo-me. Há muito que não pensava nelas, acho até que desde o início de minha adolescência. Talvez porque somente agora me sentisse em paz para olhar o céu e pensar nelas, como quem não tem mais nada em que pensar. Pois nada é mais avesso à adolescência do que a tranqüilidade e embora ainda seja jovem e me sinta como tal, creio que algumas turbulências já passaram.
Prossigo em minha epístola mental e transmuto algumas palavras em sorrisos, sorrisos que os estranhos não compreendem, e nem poderiam, não é mesmo?
Interrompo minha deliciosa correspondência para entrar em casa, infelizmente ao notar já me via de frente para o portão. Os gatos me detêm pelas pernas, enroscando-se em meus tornozelos por amor, por saudade, por ração e leite...
Após satisfazê-los com carinho e suprimentos, decido documentar minhas palavras a você para não perdê-las, mas sou tentada pela idéia de um banho refrescante e um bom café solúvel. Coloco a água no fogo enquanto entro no banho.
Pouco mais tarde, sentada no sofá, caderno numa das mãos, um lápis na outra e uma xícara de café, pela metade, misteriosamente, adormeço...

SANTOS OU PECADORES

E de repente – talvez não tão de repente, as coisas nunca acontecem repentinamente como pensamos – ela se deu conta de que queria mais. Mais do que uma casa pra cuidar, mais do que filhos, mais do que um trabalho que pagasse bem, mais do que uma carteira aberta. Ela percebeu que podia mais, que merecia mais...
Necessitava de tempo para ser simplesmente mulher, para estar consigo mesma, para sentir a própria pele num banho tranqüilo, sem pressa para preparar o jantar ou buscar os filhos na escola.
Percebeu que a vida possuía muito mais incoerências do que pensamos na juventude e passou a julgar menos e ter mais compreensão a oferecer.
Começou a acreditar firmemente que merecia aprender mais, pelo simples prazer de aprender, a desejar ardentemente uma carreira que lhe preenchesse a alma e o tempo com o prazer de algum ofício que amasse, que em vez de uma carteira aberta, queria ao seu lado alguém que pudesse abrir-lhe o coração, que estivesse ali para ouvir e principalmente para opinar e para responder, afinal, não dizem que “até as paredes têm ouvidos”?
Crescera ouvindo as mulheres da família e da vizinhança elogiando os maridos que eram fiéis, que tinham bons empregos, que não batiam nas mulheres... Mas era só isso? E ela e todas as outras mulheres que tinham que ser boas mães, boas esposas, boas donas de casa e aceitarem a falta de elogio, a falta de gratidão, a falta de atenção?
Não, de repente, percebera que queria mais, mais do que um santo marido: fiel, bem empregado, que não bebesse ou fumasse. E descobriu que muitas vezes, pode-se ser infinitamente mais feliz ao lado de pecadores que tenham ouvidos para ouvir...

Ariadne

MEIA-LUZ

Penumbra. Meia Luz. Serão a mesma coisa? Penumbra lembra mais as sombras que se ocultam no som de seu nome, ao passo que meia-luz deixa vivos o som e a imagem da “luz” que ecoa por mais tempo. Nem escuridão, nem luz. Naquele momento sentia que assim se tornara a sua vida, nem luz, nem sombra, nem felicidade, nem tristeza.
De uma vez por todas decidira seguir o conselho de uma amiga, dessas pessoas que entram e saem de nossas vidas sem jamais se fazerem ausentes: “guarde no coração, apenas...”. As frustrações apresentam-se sempre no término das coisas, nunca no eco que deixa em nós. É preciso deixar viver a ressonância do que morreu, meia-luz ao invés de penumbra...

PÚBLICO OU PRIVADO ?

Em certa reunião de condôminos, convocada às pressas pela síndica...
Síndica – Boa noite para todos, gostaria de abrir a pauta desta noite com um assunto do interesse de todos vocês: o conteúdo de seus lixos. Analisando os dados que me revelaram seus lixos, cheguei à conclusão de que algumas práticas, adotadas entre os moradores deste prédio familiar, devem ser banidas mais do que depressa. Um exemplo é o Sr. Fábio, o senhor pretende abrir um novo negócio em nosso prédio?
Fábio – Ah sim, tenho me interessado bastante pelo ramo da informática e tenho feito algumas pesquisas com este fim, mas o que isso tem a ver com meu lixo? Sei que não tenho separado os recicláveis, mas sabe como é, o corre-corre do dia-a-dia. Mas “estarei tomando” providências a esse respeito!
Síndica – Ah! Bem, não foi exatamente este tipo de negócio que eu tinha em mente. Nem é exatamente esse o problema. A julgar pelas embalagens encontradas no seu lixo, poderia jurar que o senhor pretende abrir um Sex Shop, brinquedinhos exóticos esses que o senhor anda comprando não? - Fábio muito sem graça, não chega a se defender, apenas mantém-se em silêncio. Por sua vez a síndica prossegue em seu impiedoso julgamento.
Síndica – Mas o que realmente me preocupa é o problema de Rose e seu namorado, Mário. Os bilhetinhos de um jogados fora, as fotos do outro rasgadas no lixo e ambos com novos vícios, Mário começou a fumar, pois encontrei em seu lixo embalagens e bitucas de cigarro, e Rose?! Agora toma antidepressivos, até mesmo o lixo de vocês anda numa fase meio down, por que não tratam logo de arrumar novos namorados? A fila anda minha gente! - Ambos se entreolham num misto de constrangimento e raiva. Em seguida voltam seu olhar para Fábio, que nesse momento encontra-se com o braço erguido, requisitando a palavra.
Síndica – Pois não?
Fábio – Eu concordo plenamente com a importância do lixo no julgamento que fazemos do comportamento alheio.
Síndica – Eu estou certa a respeito disso.
Fábio – A senhora, por exemplo. Vejam só que outro dia encontrei em seu lixo algo que me deixou profundamente tocado.
Síndica – Em meu lixo?!
Fábio – Sim, encontrei em seu lixo os restos de uma simpatia, que creio eu não deu muito certo não. Velas, mel, até li a tal da simpatia, era para arrumar namorado, mas como não vejo a senhora com ninguém, e os “elementos mágicos” estavam no lixo...
Síndica - Ora, mas quanta presunção e que invasão de privacidade!
Rose – Já que o senhor tocou no assunto, eu também vi o tal lixo, mas acabei vendo mais do que gostaria, consegui ler o papelzinho que estava dentro do mel e adivinha qual era o nome escrito nele? – Nesse momento, Rose olha para Mário.
Mário – Eu não tenho nada com isso, eu já te disse um milhão de vezes que nunca tive nada com essa aí, aliás, se tivesse para que ela precisaria fazer uma simpatia com meu nome?
Síndica – Já que concluímos que o lixo é privado e não público e que deve permanecer onde está, a reunião está encerrada! Obrigado a todos pela presença e Boa Noite. - Disse a Síndica saindo de fininho.

PARADA NO SEBO MAIS PRÓXIMO

Para os dias em que o frio nos atinge o coração, existe sempre um porto seguro na ilha mais próxima. Bons livros são bálsamo para corações partidos. O que pode ser melhor do que as páginas da ficção quando a vida torna-se, um tanto, pesada? Às vezes por nada em especial e por tudo o que nos revisita, a vida torna-se um pouco exaustiva, se é que a exaustão pode derramar-se sobre nós em pequenas doses...
Mas a questão é que um bom amigo: novo ou velho, pesado ou sintético, intelectual ou descontraído, sempre disposto a uma conversa íntima sob o edredom, e que de preferência possa ser carregado na bolsa ou na mochila, nos permite o descanso de uma realidade morna e sem conflito.
Pergunta-se hoje, em meio ao relampejar das tecnologias, o que será de seu futuro. Hoje são tantas as distrações e formas de evadir-se...
Ninguém sai ileso do contato com a arte, porém, a arte literária depende de nós leitores, para realizar-se. No momento em que abrimos um livro, os seres que nele habitam, até então inanimados, ganham vida através do sopro que nós damos às suas palavras, fazem-se verbos assumindo nossa imagem e semelhança, sua existência depende de nós.
Avalon precisa da nossa crença na Grande Deusa tanto quanto Sininho precisa da fé das crianças para permanecer viva. E enquanto lemos, dividimos com o escritor a criação de sua obra, o qual nos presenteia com uma parcela do seu crédito. Carregamos conosco as personagens que nos tocam, que realizam aquilo que, por força do acaso ou das convenções, não nos encorajamos a tornar real, acrescentando-nos o que nos falta, seja isto companhia, fuga ou ambos.
Por isso, um vazio assume o lugar das páginas cuja leitura encerramos, e nos despedimos da companhia daqueles que até então povoaram nosso imaginário e o nosso cotidiano. Só nos resta buscar, agora, abrigo e pronto socorro no sebo mais próximo...

Ariadne

O AMOR É MUDO

O ser humano está fadado a um triste legado: o de possuir a capacidade de se comunicar com outro, sem quase nunca conceber de fato um ato comunicativo. Quantas guerras seriam evitadas senão fossem os mal entendidos que as principiam desde o início dos tempos? Não estamos sós, no entanto, somos ilhas sem conseguir compreender jamais o que se passa no interior do outro, sem compreender sequer o que se passa no interior de nós mesmos. Qual castigo poderia ser maior do que o de possuir dádivas que não trazem frutos? O homem permanece incompleto, possuidor do antídoto de todas as doenças que o atormentam, que lhe é tão intrínseco, que não pode encontrá-lo, tal qual Prometeu acorrentado, que se recompõe todos os dias simplesmente para voltar a ser dilacerado.
E o amor? O amor é a sensação, factual ou não, de que a comunicação entre dois seres finalmente completou-se. Mais do que isso: é a transcendência da comunicação. As palavras tornam-se obsoletas diante do encontro entre almas. Finalmente não precisamos mais justificar nossos atos, quem somos ou por quê. Livramo-nos de uma vez por todas do peso morto das palavras que jamais completam sua missão. Qualquer justificativa torna-se desnecessária diante da (in)comunicabilidade do amor.

GELÉIA DE MORANGO

Criei coragem e resolvi fazer aquela geléia de morango e aproveitar uns morangos meio sem graça que “arrematei” no fim da feira. O melhor da geléia de morango é o delicioso e cor-de-rosa aroma de morangos que se espalha pela casa toda e permanece ao longo do dia, suavizando-se lentamente sem querer partir.
Isso me fez refletir sobre a magia do aroma que nos transporta para momentos esquecidos. Quem nunca parou de repente, tentando extrair do inconsciente algo trazido por um aroma familiar? Algumas vezes não nos recordamos com nitidez o que exatamente aquele perfume tenta nos trazer de volta, mas permanece fortemente gravado pelo nosso sentido, registrado como fotografia em algum lugar no porão da memória. Pois a vida é composta de cheiros, cores, sensações de frio, calor e inúmeros sentimentos despertados por todos os sentidos, por mais ancorados que estejamos em nossa visão preguiçosa. A memória encontra meios inesperados de guardar tudo aquilo o que não queremos deixar partir e nos surpreende sempre com lembranças que não sabemos de onde vêm, com que perfume, com que som: literalmente “trazidas pelo ar”.
Captar o mundo não é apenas registrá-lo com riqueza nos detalhes que podemos visualizar, mas sim devorá-lo em toda a sua essência de texturas, aromas e sons, em todos os seus nuances.

E POR FALAR EM OLHAR...

Em palestra acadêmica sobre “O olhar feminino em Machado de Assis”, foram levantadas questões acerca da diferença entre “Erotismo” e “Pornografia”, além de algumas fofocas sexuais, pois falar de sexo sempre desperta um calorzinho mesmo na face dos mais puritanos.
Entre outras conceituações, me arrisco dizer que o Erotismo, assim como a própria palavra já indica em sua ascendência em “Eros”, desperta o desejo ligado ao amor, o que vai muito além da mera ilustração do ato sexual em si, poderia até dizer que o erotismo “transcende” a tudo isso.
Arrisco-me ainda a afirmar que tudo o que é erótico transborda muito mais seu pólo feminino e suas sutilezas. O sexo para as mulheres está muito mais ligado à psiquê do que ao físico. Portanto, o olhar feminino é muito mais erótico do que se supõe.

DIAS NUBLADOS

Hoje é mais um daqueles dias em que acredito na felicidade. No entanto, nenhum fato novo, nenhuma nova pista de onde encontrá-la. Na verdade o dia até mesmo nublado está. Apesar disso, algo trazido pelo entardecer espalha pelo ar fluidos de esperança, embora não possa enxergar sua cor ou sequer vislumbrar sua forma. Mas os dias transcorrem dessa maneira: com tonalidades e aromas diversos, trazendo uma nova surpresa a cada instante, boa? Talvez sim.
Estamos sempre desejando o absoluto. Um dia absolutamente feliz, uma noite absolutamente tranqüila, sempre a espera de conhecer alguém absolutamente maravilhoso. Mas a vida não é absoluta, não vivemos o romance de folhetim em que facilmente se determina quem é o vilão e o mocinho em sua absoluta bondade e perfeição.
Uma vez que nada é completamente mau ou completamente bom, perdoem-me o clichê: “o copo de Coca-Cola pode estar tanto meio cheio, quanto meio vazio”. Não precisamos sofrer por não alcançar a felicidade completa nem por não nos sentirmos completos. Podemos sobreviver a um dia sem sorrisos ou palavras gentis, já que tão necessários quanto estes, são as asperezas e tortuosidades do caminho.
Viciados em felicidade e beleza, deixamos de enxergar as lições contidas no lado julgado feio e triste da vida, ou mesmo nos dias comuns, que nada trazem de especialmente bom ou mau. Rubem Alves em uma de suas crônicas divide conosco o ensinamento de que a tristeza é fundamental ao exercício da compaixão, pois se não a conhecermos, como nos compadecer da tristeza do outro? Uma vez que a misericórdia consiste em sentir no coração a miséria do outro, como fazê-lo sem viver profundamente os dias nublados?
Sendo assim, talvez haja um equívoco no desejo de “dias melhores pra sempre”. Talvez os dias melhores sejam aqueles que nos tragam novas lições. Os dias em que o sol desponta, os dias em que o frio nos corta a garganta e, sobretudo, nos dias nublados, em que não sabemos muito bem o que devemos sentir.

DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA

Nunca tive o mau hábito de me intrometer em conversa alheia, mas começo a pensar que de vez em quando precisamos “entrar na briga” para defender o que é certo ao invés de nos mantermos sempre na segurança e na comodidade da boa educação.
Um dia antes do referido acima “Dia Nacional da Consciência Negra”, tive a infeliz oportunidade de ouvir um “fulano” dizer: “É... amanhã é dia dos preto!” e ironicamente ao lado desse indivíduo encontrava-se um representante da classe profissional dos educadores, que sendo de suas relações ouvia calado o comentário do outro.Classe essa que, como pôde ser comprovado no incidente mencionado, sofre “perdas” cada vez maiores com o “acréscimo” de certos pesos mortos que ingressam todos os anos em nossas universidades.
Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer ao nosso amigo que não se trata apenas do “dia dos preto” , trata-se do dia em que faz aniversário a morte do grande revolucionário Zumbi, morto no Quilombos dos Palmares no dia 20 novembro de 1695; em segundo lugar, gostaria de deixar a todos que possam estar lendo este desabafo, um convite à reflexão do que representa essa “Consciência Negra”para um país onde o negro muitas vezes não se reconhece como tal e onde o branco ignora mais de 45% da população de seu país.
Mas é claro que no Brasil, um país onde somos todos irmãos e não há lugar para baixezas como o racismo, não se faz necessário um dia para que reflitamos sobre o assunto não é? Infelizmente, cabendo apenas na ironia tal realidade utópica, o “Dia da Consciência Negra” nos dá uma data marcada para que possamos pensar no que tem sido a realidade brasileira por trás dessa hipócrita camaradagem refletida em comentários como: “Eu não sou racista, meu melhor amigo é negro!”. Afinal, precisamos de um dia “pros preto”, já que todo dia é o dia do preconceito... de negros que desconhecem sua raça e de hipócritas tapinhas nas costas!

DIA DE FAXINA

Tenho um ritual para os dias de faxina, que precisa ser seguido para que a eficácia da limpeza se concretize: preciso começá-la por dentro. Começo sempre pelo cômodo dos fundos da casa, vou progredindo cômodo a cômodo até chegar à porta de entrada e então finalmente, sair pela porta da frente recolhendo os lixos da fachada, podando as folhas amarelecidas das plantas e tirando o limo do piso e das paredes.
Divagando acerca da felicidade, cheguei à conclusão de que esta só é possível após uma boa faxina que deve, logicamente, se dar de dentro para fora. Começamos pelo cômodo dos fundos, onde normalmente guardamos as mágoas, as frustrações e, sobretudo, as ilusões.
É muito mais cômodo creditar a felicidade a causas externas, não é mesmo? “Não sou feliz por não ter fulano, sicrano ou tal coisa ao meu lado”. Assim nos livramos do peso de nosso próprio fracasso.
A felicidade depende de nossa capacidade de alcançar a paz interior, cujo caminho é conhecido apenas por nós mesmos. Por seu caráter individual, somente podemos chegar com nossas próprias pernas, jamais escorados, ancorados ou carregados por mais ninguém. Nem todas as sinalizações, nem todas as pistas que possam indicar seu caminho nos levarão até lá, se não formos capazes de decodificar os sinais.
Após a casa limpa, percebemos o que foi bom pode e deve ser aproveitado e refletidos em ações futuras: existem coisas que podemos reciclar.
É preciso arregaçar as mangas e trabalhar, e talvez não haja trabalho mais árduo do que aquele cujo sucesso ou fracasso reflete-se em nosso espírito. A felicidade não é externa a nós, é intrínseca ao nosso ser.
Mãos à obra e boa faxina!

CARPE DIEM

Por quanto tempo ainda perderemos nos preparando para a vida e acreditando continuamente que ainda não estamos prontos para ela ?
Sem dúvida o conhecimento da técnica é importante, não pretenderia em nenhum momento desprezar a importância do saber, mas o “velho deitado” não costuma dizer: “a prática leva à perfeição?” Como saber o ponto do tempero sem colocar a mão na massa, para em seguida colocar à prova de nosso próprio paladar, o prato executado? É preciso arregaçar as mangas para o trabalho para conhecer nossa própria capacidade, retirar os excessos e rebarbas, lapidar o que precisa ser aperfeiçoado, refazer o caminho de volta corrigindo os erros que persistirem, para em seguida nos colocarmos à prova de nosso próprio julgamento, antes de nos expormos ao julgamento externo.
Não será o medo desse mesmo julgamento o que nos trava? Sempre o olhar alheio a nos intimidar, sempre o julgamento do outro a nos impedir de executar idéias, ou no mínimo a nos refrear os ímpetos? Ou será o nosso próprio julgamento, muito mais impiedoso, por nos levar a crer que não sobreviveríamos ao julgamento externo, sem nos permitir sequer a exposição a ele?
Passamos tempo demais acreditando que estamos nos preparando para algo que nunca estaremos preparados realmente, se não nos arriscarmos aos primeiros passos, se não externarmos aquilo que vive apenas em nosso imaginário sem nunca se tornar real. É na vida real que as idéias tornam-se palpáveis, inclusive o aprendizado que jamais poderia se concretizar sem a pratica da teoria, pois a teoria somente é real, se inspirada na prática.
Faz-se necessário para isso, admitir que erramos e nunca seremos suficientemente perfeitos ou impermeáveis ao erro. Devemos sim cultuar a perfeição e buscá-la, por que não? Mas seria uma grande incoerência se nosso compromisso com a perfeição nos impedisse de percorrer o percurso obrigatório até ela, já que a única maneira de alcançá-la de forma real e absoluta, é nos expondo à nossa própria imperfeição.