terça-feira, 22 de julho de 2008

VOVÓ

Levantava da cama todos os dias às 5h da manhã. Dizem que com o passar dos anos, dorme-se cada vez menos. Menina, a gata siamesa, levantava-se um pouco depois, não ficava muito tranqüila em deixá-la sozinha com seus perigosos esquecimentos, embora nada pudesse fazer. Certa noite, sua neta chegou preocupadíssima, atraída pelo cheiro do gás aberto. Já não sentia o cheiro de nada, nem o sabor da comida.
Certo dia, como de costume, ela levantou-se com uma ruguinha na testa, que materializava a eterna sensação de que algo se perdera na última noite e que por mais esforço que fizesse, não conseguiria lembrar-se do que era. Pôs a água no fogo, para passar um café fresco, e em seguida iniciou sua busca de todos os dias. Quando a água já secava no fogão, esquecera-se, por completo, do que deveria fazer com ela.
Alguém bateu na porta.
- Bom dia irmã? Tudo bom? – sorriu-lhe a simpática visita, que teve como retorno um olhar confuso. Não se lembrava de quem se tratava. Seu olhar esvaziou-se numa solidão infinita. Mas depois de alguns segundos, transcorridos como anos, ela lembrou-se da amiga e com um sorriso aliviado retribuiu-lhe o cumprimento. A visita era a sua irmã de fé, freqüentavam a mesma Igreja, há vários anos, e em todo esse tempo, uma jamais aparecia por lá sem a outra.
- Bom dia, graças a Deus. Entra irmã. Toma um cafezinho comigo, a água já deve estar até no fogo. - Olhou para o fogão, e desconcertada descobriu a leiteira já vazia, e voltou a enchê-la de água. A visita sentou-se num gesto cuidadoso: na sua idade um movimento brusco poderia ser fatal.
- Estava procurando uma coisa, mas já não me lembro o que era. – disse a anfitriã à amiga, sentando-se para tomar o café recém coado.
Após alguns “dedinhos de prosa”, a amiga partiu. Era avó também, e logo, os netinhos, ainda pequenos, chegariam da escola.
Quando se viu só, novamente, reiniciou sua busca. A pobrezinha passava os dias procurando algo que nunca encontrava. Esquecia-se de se alimentar, ruminando a solidão e o abandono que a família lhe reservara, sem saber que, a cada dia, perdia o domínio da própria vida, à medida que perdia a sanidade.
Menina esfregou-se em suas pernas, como se pressentisse, de alguma forma misteriosa, que a amiga velhinha sentia-se ela mesma perdida, e que precisava distrair-se da própria abstração. Ela retribuiu-lhe o afeto, passando suavemente a mão em sua cabecinha redonda como um biscoito. Menina estava gordinha, apesar de vez por outra passar por alguns maus bocados, como quando sua dona esquecia de alimentá-la, ou quando enchia seu pratinho de comida azeda, sem percebê-lo. Ainda assim, Menina permanecia fiel, ao seu lado.
Após o almoço, a velhinha costumava cochilar em sua espaçosa cama de casal. Desde que o marido partira, a cama, que às vezes lhe parecera apertada, era agora grande demais para seu corpo que simulava diminuir a cada noite. De vez em quando Menina a acompanhava, mas, geralmente, aproveitava para dar umas voltas pelos muros da vizinhança.
Ocupava-se perseguindo pombos, provocando cães, presos em seus portões ou correntes, e chegava até a receber agrados e ração de primeira, de alguns simpáticos amantes de animais, a quem costumava visitar esporadicamente. Era livre, sem dúvida, embora soubesse exatamente pra onde devia, e queria voltar à noite. Mas algo em sua intuição (pois felinos são, de fato, muito intuitivos) avisara-lhe que deveria voltar mais cedo naquela tarde.
Apressou-se a passos elegantes, atravessando ruas quase sem preocupar-se com os carros que vinham. Quando chegou em casa, a porta estava aberta, mas somente encontrou o vazio. Sua dona não poderia ter ido à Igreja, era ainda muito cedo, e se algum parente houvesse ido buscá-la, a porta na certa estaria trancada. Também não costumava ir ao mercado, já que após perder o dinheiro diversas vezes, uma de suas filhas encarregava-se de levar-lhe as compras. Onde estaria então?
Certa vez a velhinha se perdera, e fora trazida de volta por um vizinho. Mas Menina temia que numa dessas excursões algo mais sério acontecesse a ela. Quando já perdia as esperanças, avistou a familiar cabeleira branca, já um pouco desgrenhada. Deu um miado contente e seguiu apressada, quase correndo ao seu alcance. Porém, na euforia de reencontrá-la, não viu o carro que se aproximava, e não houve tempo de deter-se, ou apressar-se. Menina ficara muito ferida, e o carro, sequer detivera-se para ver o que havia atropelado e que causara impacto tão leve. Pensara na certa se tratar de um pombo ou coisa assim. Menina ainda erguera a cabeça, na tentativa de avistar a velhinha, que se distanciava cada vez mais, até estar completamente envolta em brumas e desaparecer por completo de sua visão.
Mais tarde, após recordar-se do caminho, Vovó voltou pra casa. Estranhou os pratinhos de ração e de leite que encontrou ao lado do fogão. Quem os pusera ali e por quê, se, há muitos anos, nenhum animal habitava aquela casa? E embora não recordasse a presença de Menina, no lugar de sua lembrança, ficara um espaço oco, que aos poucos fora ocupando o lugar das saudades, dos amigos, das realizações, e dos sonhos, até tragar-lhe a existência, como um vampiro que se aproxima pela noite, e deixa ao amanhecer uma forte sensação de que o tempo negligenciara horas, dias, meses e até anos de sua vida, mas deixara intacto, o espaço vazio.

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